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MINHA EXPERIÊNCIA COM A MORTE

Eu tinha onze anos de idade quando aparentemente morri. Era o final da manhã em Vigia. A casa de meu pai ficava sobre palafitas às margens do rio Guajará-mirim. Como costumava fazer, meu pai convidou os filhos para um mergulho antes do almoço. Todos descemos àquele quintal típico do cenário amazônico. Nas águas, estavam meu pai, minha madrasta e meus irmãos, mais novos que eu. Depois de curto tempo, meu pai e esposa subiram à cozinha de casa. Eu, que não sabia nadar, fiquei ali brincando com os meus irmãos. A maré estava seca. Ou mourões que amarram as pequenas embarcações havia muito estavam totalmente descobertos. Estávamos a pouca distância do canal do rio. Mas, ríamos inocentemente enquanto brincávamos de esconde-esconde atrás de alguns casquinhos e botes afundeados.

Minha irmã de quase minha idade disse que ia almoçar. Então, implorei pela continuidade da brincadeira e lhe supliquei um “último mergulho”. Como disse, eu não sabia nadar, e tentava isto justamente nessa hora. Com a permissão, de costas para o rio, água na cintura e apoiado em terra, lancei-me para mais um desafio de submergir. Foi então que os meus pés resvalaram. Senti a terra escapar da ponta dos meus dedos, e cai num poço. Era a primeira imersão.

Por algum tempo estive mergulhado, sem respirar. No início, senti muito desespero, mas, depois, reunindo forças, consegui impulsionar o corpo para fora d’água. Emergi até os ombros. Minha irmã mais velha estava rindo parada atrás de um casquinho. Acenei, mas não adiantou. Submergi novamente. Segunda imersão.

Agora, aparentemente eu desci mais profundo e por mais tempo. Uma paz começou a tomar conta de mim, e eu fui me afastando de toda noção de consciência. De repente, subitamente fui despertado para a minha situação, e mais uma vez impulsionei o corpo, alcançando o nível dos olhos. Minha irmã continuava rindo, julgando que eu brincava com ela. Terceira imersão.

Repetiu-se toda a cena, mas, desta vez, não consegui mais emergir. Do meio do caminho das águas, desci de vez ao leito do rio, exaurido completamente. Última imersão.

Desci o mais profundo que pude notar. Senti uma profunda paz tomar conta de mim. Nada de dor nem agonia. Fui me distanciado mais uma vez de toda consciência do afogamento. Todos os sons da água foram silenciando, enquanto uma grande tela foi projetada diante de mim. Numa velocidade indescritível, toda a minha vida começou a passar diante dos meus olhos.

Eu me vi criancinha. Vi pessoas cuidarem de mim. Assisti ao meu primeiro dia de aula. Vi minhas professoras e meus colegas. A vida foi rodando como um filme, ao tempo em que aquela profunda paz me dominava. Nada de medo ou dor. Eu estava leve como um pluma quando levada pelo vento. Eu estava indo, sendo levado velozmente, enquanto minhas memórias vinham sendo apresentadas em ordem cronológica. Então, fui seguindo numa espécie de túnel de luz, onde me parecia não haver a mínima noção de tempo nem de espaço. Era prazeroso!

E foi assim, nesse estado de felicidade, que minha consciência retornou bruscamente. Como se eu levasse uma descarga elétrica, gritei: “Meu Deus, estou morrendo!”, foi minha constatação de desespero. Nessa hora, senti alguma pessoa segurar meu corpo. Com as duas palmas, alguém apanhou-me pelo meio e impulsionou meu corpo na horizontal como faz um nadador no momento da largada, e firmou-me na praia.

As águas chegavam aos meus ombros quando meus pés tocaram o solo. Eu havia caído no canal. Ninguém se aproximara de mim. Meus irmãos, acreditando que eu estava me divertindo, haviam se distraído e estavam voltando para casa. Eu havia bebido muita água. Meu estômago estava enorme. Porém, eu não sentia nenhum mal respiratório, nem a menor falta de ar ou tosse. Alguém me tirou do rio, e eu sei que foi coisa de Deus.

O que ficou para mim, além da gratidão eterna pelo livramento divino, foi a noção do que acontece no momento da morte. Para mim, a experiência foi boa. Hoje, quando a ciência afirma que essa visão de retrospectiva é uma tentativa do cérebro evitar a falência de todo o sistema, eu acredito. Agora, a paz que eu senti, e o livramento, isto está muito além da ciência.

Rui Raiol é escritor (Site: www.ruiraiol.com.br)

Publicado no jornal O Liberal em 30/8/2016