O Chafariz Brasileiro
Publicado no jornal O Liberal em 11/11/2014
Não se impressione com o título. Infelizmente, não vou falar das visões que favorece esse interessante componente dos espaços públicos. Deixemos de lado a cadência dos jatos, a simetria, os tons do arco-íris e até o aroma de algumas dessas grandes peças decorativas.
O chafariz brasileiro é o ícone da nossa política. Em pleno vapor, ou parado, tem muito a nos ensinar sobre administração pública e o apreço que também o povo empresta ao nosso dinheiro. Quantos chafarizes você tem conhecido ao longo da vida, pode enumerar? Quantas dessas peças você assegura que funcionem ainda hoje? É isso aí: o chafariz brasileiro é uma obra emblemática da nossa história política.
O chafariz não é uma obra essencial. Classifica-se, juridicamente, como um elemento voluptuoso, algo que está ali para ser apreciado pela sua beleza, compondo um conjunto, assim quanto uma árvore bela compõe a pintura de um bosque. Por isto, geralmente o chafariz está na praça, onde, em alguns casos, torna-se a atenção principal.
Sinceramente, não sei, mas acho que um chafariz custa muito, principalmente os mais modernos. É uma mão-de-obra relativamente complexa, que envolve especialidades elétricas e hidráulicas. Não é obra para leigos. O chafariz é desenhado por especialistas, capazes de, a partir da água, criar surpreendentes harmonias. O chafariz está presente em todo o mundo, mas é no Brasil – e bem provável em outras repúblicas esquisitas – que essa obra de arte mais fala, principalmente depois de morta.
Recentemente, estive numa capital brasileira. Passeando pela orla, meu anfitrião apontou-me, desolado: “E, aqui, ficava um lindo chafariz…”. Aproximei-me para conferir os restos mortais, mas chafariz morto ganha de cemitério. Não tinha cruz, nem cal, nem flores murchas. O que eu vi era uma ruína do que outrora fora uma alegre peça de arte, bem ali, no centro da cidade. Mortinho, seguindo a sorte de sua espécie verde-amarelo. É isso: chafariz brasileiro é uma peça natimorta. Se você quiser apreciar, veja se pega o trabalho de parto, pois em questão de semanas tombará à campa fria.
O chafariz brasileiro bem podia ser eleito para ser um tipo de mascote do mau político. Símbolo do descaso. Desperdício. Engano. Brincadeira com o povo. Nesse humor negro (por favor, não me processe pela classificação humorística), entra em discussão um dos temas mais vitais para a nossa sociedade: a questão da continuidade no negócio público. Eis agora o símbolo perfeito! O chafariz brasileiro prova que essa letra constitucional está morta.
O Brasil é o país do desperdício. Gasta-se no superfaturamento. Gasta-se na má execução. Gasta-se em não se exigir a garantia dos contratos. Gasta-se em não conservar o que foi feito. As causas dessa falta de continuidade são muitas, passando pelo desprezo às bandeiras partidárias que já foram arrancadas do mastro, ocupação de cargos e funções sem preparo técnico e impunidade administrativa, tanto do gestor quanto dos vândalos que cooperam para a deterioração da coisa pública.
Geralmente, quando o chafariz seca de tristeza, o seu entorno vira lixeira e criadouro de toda sorte de praga. Tanque da morte. Aedes Aegypt? Por que se preocupar com o vasinho de casa? O túmulo do chafariz está clamando por outrem. Basta olhar. Não precisa de lupa. Não precisa de nada. As larvas do Aedes e do Anófeles nadam livremente na piscina, exibindo-se para quem quiser se aventurar nesse recinto fétido e desolado. Foi-se o nosso dinheiro. Foi-se o nosso lazer. Cuidado com a sua vida! Não passe perto. As antigas luzes coloridas agora estão refletindo as trevas do nosso estagnado processo democrático.
Não é só chafariz, claro. O Brasil é o país das obras abandonadas. Tem aeroporto que não decola. Estrada que não leva a nada. Hospital que passa anos vendo a ambulância passar. Uma alavancada? Só daqui a pouco. No Brasil, para os políticos, a gente nasce e morre a cada dois anos. Então, inaugura-se a praça e liga-se o chafariz. Aproveite, dura pouco.
Rui Raiol é escritor (www.ruiraiol.com.br)