Artigo: “Contemporaneidade compulsória”
Nossa existência passa, necessariamente, pelo fenômeno da contemporaneidade. Existimos como resultado desse fator. A vida que nos anima é resultado direto do mesmo _animus_ de outros. Esta é a contemporaneidade mais restrita: a coexistência com ascendentes e descendentes. Não escolhemos nossos contemporâneos. É uma contemporaneidade compulsória, algo que a vida não pede licença a ninguém. Um século, nenhuma coexistência; de repente, sete bilhões de almas ocupando a mesma litosfera. Por sua vez, essa escolha aleatória é indiferente a qualquer noção de afinidade, seja racial, religiosa, climática etc. Estamos viajando juntos nesta nave planetária, e pronto! Somos todos cosmopolitas. Lendo algumas biografias e a própria História, somos às vezes tomados de um sentimento de fuga a outras eras. Particularmente, sou fascinado pelos contemporâneos de Cristo, mormente os que viveram na condição de discípulos. Quase sempre recai um romantismo exagerado sobre esse estranho saudosismo.
No filme “Meia-noite em Paris”, Woody Allen trabalha essa questão da chamada “idade de ouro”, quando o passado sempre parece melhor a cada geração. É um tipo de saudosismo inexplicável, uma espécie de fuga da realidade, a aspiração por algo que não existe mais e, quando existia, também aparentava imperfeito aos seus contemporâneos. Acontece que todos nós estamos presos ao tempo e espaço onde nos inserimos. Trata-se mesmo de uma contemporaneidade compulsória não somente ao aspecto humano, mas, a tudo que orbite conosco no mundo durante nossa existência. E a nossa visão de mundo está diretamente presa a cada item desse gigantesco mosaico. Essa contemporaneidade compulsória une-nos cronologicamente a pessoas que, pensamos, deveriam existir em épocas diferentes. Ao passo que persiste também a aspiração pela existência de outros situados em outros segmentos dessa grande reta. Não está à nossa escolha. Vendo a história da Terra, estimada em bilhões de anos, vemos quanto nossa contemporaneidade foi trabalhada para que vivêssemos nossa história também. Tudo concorreu para isso. Tudo continua concorrendo até agora. No tocante à vida no planeta, podemos influenciar diretamente, mas, no tocante à inserção deste nas leis do Universo, nada podemos fazer. A Terra gira. Inclina-se. Corre. E nós vivemos esta contemporaneidade compulsória sem podermos alterar sua rota. É uma contemporaneidade compulsória e cúmplice. Francamente, se pudesse, rejeitaria alguns contemporâneos, alguns que só pensam em guerras, opressores, manipuladores de consciência, mas não posso mesmo, tampouco eles. É compulsório mesmo.
Rui Raiol é escritor
Publicado no jornal O Liberal em 27/6/2023
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