ÚLTIMAS NOTÍCIAS

Artigo: “Você, um sobrevivente na Terra”

A ciência afirma que a vida na Terra é algo suscetível a cataclismos que podem dizimar e aniquilar qualquer sinal de nossa existência no mundo. Na verdade, a humanidade ocupa uma fatia estreitíssima na cronologia de 4,5 bilhões de anos do planeta.     Atividades do interior da Terra podem ser fatais. Uma série de pesados terremotos, tsunamis e derramamento das entranhas ardentes desta esfera azul poderiam simplesmente varrer qualquer indício de vida. Porém, considerando um evento menos radical, como o ocorrido há cerca de 65 milhões de anos que extinguiu os dinossauros e grande parte da vida terrestre, a sobrevivência de alguns de nós nos empurraria  para um passado bem distante dos dias atuais.     Não obstante o elevado estágio do nosso progresso científico e tecnológico, o conhecimento é privilégio de poucos. Nossa geração é expert em manusear eletrônicos, mas, nada sabe de seu funcionamento. O desenvolvimento desse tipo de saber é proporcionalmente excludente de seus usuários.      Diferente de um televisor analógico com antigo sistema de válvulas, ou de rádios de pilha cujos defeitos podíamos vasculhar à procura de uma solda “fria” ou de  transístores queimados, nossos aparelhos são cada vez mais herméticos e indecifráveis. Se ousarmos abrir certos eletrônicos, encontraremos apenas uma placa estranha.     O conhecimento atual é algo quase alienígena para a humanidade. Na verdade, penso que não conseguiríamos facilmente diferenciar algumas produções da Terra e de outros mundos. É tudo muito estranho mesmo ao homem comum. Deste modo, houvesse uma repentina destruição dos registros de conhecimento da Terra, e voltaríamos a idades humanas anteriores ao atual estágio de progresso que tanto nos orgulha.     Quem de nós sabe fabricar um avião ou um carro? Quem sabe construir um arranha-céu? Quem é capaz de fabricar um celular ou gerar eletricidade? Quem aprendeu a montar a engrenagem de uma simples bicicleta? É assim que descobrimos o caráter seletivo do conhecimento. Assim descobrimos que alguns sabem, não a humanidade.     A departamentalização da ciência muito atrapalha. O surgimento de especialistas aprofunda o conhecimento e também sua distância da pessoa comum. Cada vez mais o saber torna-se patrimônio particular. A ideia de isonomia é praticamente nula.      Para piorar a situação de um remanescente na Terra, os nossos registros estão grafados em materiais frágeis. Diferente das civilizações antigas, não utilizamos pedras, usamos papel e eletrônicos, que rapidamente sucumbem ao fogo e à água. Sem registros acessíveis a quem escapasse da fúria da natureza, toda a produção do conhecimento estaria comprometida a quem restasse.     Para constatar isto, imagino-me agora na condição de sobrevivente. Conseguiria produzir o quê? Onde estaria o conhecimento do mundo? Penso que estaria sepultado com aqueles que me deixassem refletindo sozinho.     

 Rui Raiol é escritor e membro da Academia Vigiense de Letras

Publicado no jornal O Liberal em 14/03/2022
E-mail ruiraiol@gmail.com