Artigo: “A morte da estátua”
A capacidade de representar o mundo através da arte é um dom inato do ser humano, pinturas rupestres primitivas atestam isso. O homem parece ter uma necessidade de materializar ideias, sentimentos e crenças. Essa representação é encontrada em todos os campos, sendo bem presente na política e na religião.
Na Antiguidade, estando a política e a religião unidas, a representação desses segmentos através da arte sempre foi bastante comum, com enorme contribuição ao conhecimento. As cidades-estados e reinos tinham seus deuses. A história de um povo era a história de suas divindades. Estátuas representativas desses deuses iam à frente das batalhas. Prevalecendo o povo, prevalecia o seu deus; sofrendo revés, seus deuses eram ultrajados e destruídos.
A iconoclastia representava a derrocada final, era proporcional ao politeísmo dos povos antigos. Nações como a Assíria e o Egito, extremamente politeístas, sofriam muito mais nas mãos de iconoclastas, sem esquecer que a chegada do monoteísmo podia produzir uma “mortandade” muito maior de ícones pelas mãos de seus apologistas. O faraó Aquenáton, em pé de guerra com a religião dominante de sua época, destruiu cerca de dois mil deuses, ordenando a destruição de todos os seus ídolos no país.
Todavia, em matéria de monoteísmo e ausência de registros históricos causada por uma fé única, nada se compara ao que se verificou na história de Israel. Saindo do Egito, terra de tantos deuses, o povo judeu recebeu o Decálogo, cujo primeiro mandamento proibia a adoração de outras divindades. Muito embora os filhos de Abraão ainda tenham vivido envoltos com a idolatria por muito tempo, o cativeiro da Babilônia o converteu de vez do politeísmo.
Sem fazer aqui nenhum juízo de valor sobre o aspecto religioso, a “morte” da estátua trouxe prejuízos ao conhecimento da história desse povo. Ordenados a não fazer qualquer imagem de escultura representativa de criaturas do céu, da terra ou das águas, os judeus nada produziram de arte neste aspecto. Assim, não temos estátuas, afrescos, murais etc. A única peça histórica, onde vemos o povo judeu sendo levado cativo nos tempos do rei Dario, foi uma produção estrangeira.
Há poucos anos, o Estado Islâmico promoveu uma terrível destruição de sítios arqueológicos no Iraque. Palmira veio abaixo. As extraordinárias imagens de rostos de ocupantes de suas tumbas fabulosas foram vilipendiadas. Curiosamente, narizes de rocha foram quebrados. Por quê? Provavelmente por acreditarem os vândalos que a fratura da narina pétrea asfixiaria seu representado na eternidade, matando-o de vez: a morte da estátua.
A iconoclastia é inócua ao objetivo de seus autores, pois a fé e a história estão muito acima de suas representações.
Rui Raiol é escritor e membro da Academia Vigiense de Letras
Publicado no jornal O Liberal em 28.2.2023
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