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Artigo: “Dois estarão numa cama”

Dois estarão numa cama, máxima união permitida. Em sono profundo, dois mundos, almas gêmeas, destinos diversos a pouco. Gregários seres tão juntos, unidos no corpo e na alma, distintos estranhos no leito. Cumplicidade ferida do Alto. Alianças quebradas na Terra. Juramentos emudecidos tão rápido.

             Na cama, dois não imaginam o futuro. Se sonham, sonham com o mundo de então. Sonham com o leito, cidade, que brevíssimo deixará de existir para um. Eis a menor distância possível a quem dorme querendo acordar, a quem dorme tão perto e tão longe. Corpos juntinhos, rumos opostos, um que viaja, outro que dorme; um que se afasta, outro que fica.

            Estarão dois assim, noite igual, tempo comum sem mudança. Dia laborioso, cansaço. A noite enfim sobreveio. Plantavam. Edificavam. Casavam. A cidade seguia sua história. O tempo marchava sem trégua. Nada prenunciava esta noite, diferente noite a dois. União. Separação, evento maior que os aguarda. Assim estarão dois.

             Dois estarão. Sociedade perfeita. Dois. Divisão sem sobra. Corpos juntos, almas distantes. Personalíssima sentença. Corpos juntos, aspirações distintas. Natural. Espiritual. Valores opostos. Matéria. Espírito. Finito. Eterno. Incorruptível corpo adormece. Corruptível corpo que sonha. Paraísos na Terra. Paradisíaco Céu.

            Mas não foi esta noite que decidiu terrível sorte, foi a trilha escolhida um a um. Dias somados. Prazeres. Costumes. Caprichos. Foi a senda interna do ser, veredas pisadas ao longo do tempo. Agora estão assim: lado a lado na carne, separados na essência da alma. 

         Não demora muito, e o arcanjo toca sua poderosa trombeta. O Céu desce a Terra em segundos. Uma luz multicores entra no quarto trancado. Um raio de fogo separa o casal. Há pouco unidos, agora um parte, outro dorme. Há pouco colados, agora um sobe, outro fica.

              Foi de repente, um rapto, não se construiu o pensamento. Dois dormiam, um vigiara, vigília do bem contra o mal, vigília do mundo e de Deus. Um olhava o mundo, vivia; outro olhava, refletia. Um acelerava o passo, outro parava. Agora, este, arrebatado; outro, estático, dormindo.

             Chegou o momento, enfim, em que explicações não sobrevivem jamais. Metade da cama vazia. O Etéreo venceu a matéria.  A razão silencia discursos. A invisibilidade é mais forte que a rocha.

                 Assim terminou a história. Outro tempo começa além. Outra dor sentencia a cama. A Noiva partiu para a festa. Alguém ficou só em tormentos. Assim será naquela fatídica hora: dois estarão numa cama, um será levado, outro será deixado.

Rui Raiol é escritor e membro da Academia Vigiense de Letras

Publicado no jornal O Liberal em 15.2.2023

E-mail: ruiraiol@gmail.com