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Artigo: “O guarda-roupa dos nossos dias”

Sempre que vivemos um dia especial, eu investigo alguma diferença na jornada de 24 horas da Terra em torno de seu eixo imaginário, mas nunca encontro nada. Tampouco encontro algum senão no caminho do longo movimento de translação do planeta em torno do Sol. Por fim, espio o tempo, isto é, as condições momentâneas do clima durante esses dias, e concluo também que alguma oscilação do tempo apresentada nada tem de especial, porém, insere-se no plano natural das estações do ano. Sendo assim, onde está a diferença?     A indicação da especialidade de alguns dias da nossa vida é coisa nossa, personalíssima, é um tipo de roupa que vestimos em certos dias. Em nosso guarda-roupa interior, temos vestes para diversas ocasiões. Temos vestes festivas e de lamentos. Somos nós, e nossas circunstâncias,  que fazemos um dia ser alegre ou triste. Esse valor está dentro de nós.     Quanto ao dia em si mesmo, bem, ele é neutro, indiferente às nossas lágrimas. O Sol sempre nasce, a noite sempre vem. Enquanto espaço de vida, a superfície da Terra e o firmamento não são afetados pelo nosso emocional. Alguém pode estar chorando a morte em certo canto, enquanto outro brada de alegria: o dia segue normal.     Em dias como o Natal e Réveillon, procuramos as roupas mais bonitas para vestir cada um deles. Existe um tipo de mágica no ar. Ver e rever pessoas ganham um prazer diferenciado. Natal é dia de comer frutas diferentes, de receber e dar presentes, de ir à igreja assistir a dramatizações, tudo é luz, brilho. Então, nossa roupagem interior veste assim o mundo ao nosso alcance fazendo parecer que todos vivem esse mesmo dia. Engano.     Essa roupa festiva de determinados dias do ano é mesmo coisa nossa, personalíssima. Sendo assim, o mesmo condomínio iluminado pode abrigar pessoas que veem um dia festivo e outros que choram amargurados ao lado de árvores incandescentes. Cada qual pega sua roupa interior para vestir seu dia. Isto é escolha, mas às vezes contingência. É assim que o Natal pode ser um dia feliz para alguns e amargo para outros.      Então, como se monta esse guarda-roupas? Como ele pode comportar vestes festivas para uns e mantos de amargura para outros? Bem, como dissemos, é um guarda-roupas emocional. Nele, cada peça começou a ser armazenada desde que existimos. Cada roupa foi ali guardada à medida em que fomos vivendo cada Natal, por exemplo. Cada peça tem a assinatura de nossa biografia. Quem sempre viveu em torno de uma família feliz, com certeza, não terá dificuldade de afirmar: Oh! Que dia diferente, especial!     É neste sentido que a roupagem de nossos dias pode ser contingência. A grande questão é que esse guarda-roupa interior também é fruto da coletividade. Nós guardamos as peças que nascem da nossa interação com o meio social. Nosso emocional também é coletivo. Logo, se o cenário mudar, pode mudar também nossa forma de ver certos dias.      

Rui Raiol é escritor

Publicado no jornal O Liberal em 3/1/2023

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