Artigo: “Duas cidades”
Em todo canto do mundo, o homem convive com duas cidades, a cidade dos vivos e a cidade dos mortos. Dos atuais oito bilhões de almas que respiram sobre o planeta, alguém já calculou que 107 bilhões de mortos dividem o espaço conosco.
Do ponto de vista geográfico, os mortos também ocupam espaço. Desde pequenos cemitérios rurais até suntuosos parques, eles dividem a terra conosco. Curiosamente, cemitérios urbanos são marcos do crescimento das grandes cidades. É assim que vamos encontrar antigos campos santos no centro de atuais aglomerados urbanos.
Também de modo curioso, o metro quadrado dessas cidades dos mortos custa mais caro que o entorno habitado pelos vivos. Sem comparação à critica da metragem de condomínios populares e favelas, é essa cidade dos mortos que contém a maior percentagem de habitantes por metro quadrado, de tal forma que centenas de milhares de pessoas podem “viver” dentro de uma quadra onde esse número seria exponencialmente aumentado para satisfazer a necessidade de espaço que nós, os vivos, reclamamos à proporção que ajuntamos dinheiro no mundo.
A divisão de classes sociais é praticamente a mesma nas duas cidades. Pobres são sepultados em covas simples e, seguindo a tendência de expulsão do centro que sofreram em vida, são despachados para cemitérios da periferia, onde se repetem os males da má administração pública, que incluem ausência de infraestrutura do espaço, transporte regular, vigilância adequada e insegurança quanto à fixação na terra, haja vista que, assim abandonados pelo poder público e sem o cuidado da família, logo serão arrancados da terra erma e lançados em uma vala comum.
Do ponto de vista da contribuição para a vida em sociedade, devemos muito à cidade dos mortos. Ruas, prédios, inventos, descobertas e tantos outros itens que hoje constituem a nossa vida, não são obras de nossos contemporâneos. Vivemos sobre uma cidade cuja estrutura foi construída pelos mortos.
Na verdade, o nosso festejado desenvolvimento é em grande parte a soma de todas as gerações que já passaram, sendo mínima a nossa parcela nesse processo. É como se alguém do passado houvesse ligado u’a máquina e o nosso trabalho atual fosse apenas de garantir o funcionamento dessa engrenagem e aprimorar seu uso.
Ao contrário do proclamado privilégio dos viventes, a cidade dos mortos é conhecida por sua pacificidade. Ali, ninguém jamais se importou com título de terra nem reclamou da vizinhança. Dividindo lotes minúsculos, cada qual parece conformado com o que não tem. Enquanto isso, os vivos vão matando sem dó e aumentando tragicamente a densidade demográfica da cidade dos mortos.
Rui Raiol é escritor
Publicado no jornal O Liberal em 6/12/2022
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