Artigo: “O fracasso da teocracia”
Na discussão inflamada que ocorria no salão, um barbeiro afirmou que Deus é quem escolhe quem vence a eleição presidencial. Pedi licença para intervir e discordar, pois entendo que eleição é assunto humano, rio tributário do grande mar chamado livre-arbítrio, delegação outorgada por Deus ao homem para proceder às suas escolhas.
Essa ideia de teocracia, quando a religião se funde com a política, não deu certo nem em Israel. Entre povos politeístas, a coisa vingou por mais tempo porque o próprio governante figurava no panteão como a mais notável figura humano-divina. Porém, em Israel, logo foi derrubada.
O monoteísmo de Israel afastou a ideia de um estado divino. Não obstante o arcabouço de prescrições políticas contidas na Lei, governar consolidou-se desde cedo como negócio humano. A teocracia pura de Israel não passou dos governos de Salomão e Davi. Depois da divisão do reino, começou a ficar claro para o povo que administrar uma nação tem mais a ver com o homem e menos com Deus.
A democracia é o governo do povo. Cabe a cada um escolher bem seus governantes. E Deus? Que papel lhe estará reservado? Deus é neutro. Ele não vota nem tem candidato. Deus está muito acima dos relacionamentos políticos da humanidade. Ele não interfere. Assiste. Permite que os homens criem regimes e elejam quem quiserem.
Não se dando por vencido, o barbeiro retrucou que Deus pode “falar” aos eleitores qual o melhor candidato. Bem, que Deus é livre para falar, não resta dúvida. O que resta é saber se de fato estamos ouvindo a voz de Deus ou se estamos sendo massacrados com a ideia de um estado teocrático.
No tocante às autoridades civis, a Bíblia é clara em afirmar que todas foram “constituídas” por Deus, vale dizer, que só governam porque há um consentimento divino, nada mais, algo semelhante ao nascer democrático do Sol. Logo, a Escritura apregoa a ordem, o respeito a todas às autoridades, incluindo parlamentares e magistrados.
Agora, alguns querem implantar um tipo de estado confesso. Com isto, abrem mão do direito constitucional da laicidade, garantia fundamental ao bom funcionamento do estado e da própria religião. A grande questão é que religião e estado trabalham territórios diferentes, têm natureza e poderes diversos, chegando às vezes ao conflito.
Esse conflito fica bem expresso na relação entre a prática religiosa de Jesus Cristo e as autoridades políticas da época. Mesmo sendo submisso, Ele não deixou de exercer senso crítico sobre Herodes e Pilatos. Mesmo não pregando a revolução, o Messias se opunha ao “modus operandi” dos mandatários de Roma. Dessa premissa, concluímos que Jesus não reconhecia a figura do estado divino. Jesus não reconheceu a teocracia.
Rui Raiol é escritor
Publicado no jornal O liberal em 20/09/2022
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