Artigo: “Cidades Verticais”
O homem não para de revirar a terra desde que existe mundo. Inicialmente, suas construções aproveitavam quanto possível a natureza bruta. Cavernas e grutas estavam no topo daquele primitivo período da humanidade. Porém, não tardou muito para que surgisse um homem na Babilônia disposto a pensar mais alto. Ninrode intentou construir a primeira torre. Em seu sonho audaz, planejava subir “até o céu”, tocar as nuvens, quem sabe, e ter uma visão privilegiada de seu condomínio.
A história relata a tentativa de o homem se libertar da vida nômade da Antiguidade. Vivendo verticalmente, Ninrode haveria de pôr fim no eterno deslocamento entre as tribos primitivas da Mesopotâmia. Porém, sabemos, o sonho virou pesadelo. Ninrode não tinha elevador nem concreto a jato. Para vencer o desafio, teria de construir mano a mano, porém, Deus bradou do ponto mais elevado, o Altíssimo repreendeu aquela engenharia.
Canteiros de obras estão entre os principais elementos da paisagem urbana em países emergentes. Apesar de forte migração, a população local é parte ativa desse fenômeno em países como o Brasil. É necessário abrir avenidas mais largas para o exército de carros financiados pelo dobro do preço. A linha do horizonte é encoberta pelas torres gigantes erguidas da noite para o dia.
O fenômeno da verticalização das cidades acelera a história. É como se vivêssemos dez anos em um. Narrativas dos mais velhos sobre a arquitetura perdem-se no catálogo de demolição/edificação que folheamos nos jornais e conferimos ao vivo passeando pela cidade. Com isso, nossa memória arquitetônica torna-se peça frágil. Para as gerações mais novas, esse frenesi parece representar mesmo uma reconstrução. É como se a cidade estivesse sendo edificada para esse novo grupo.
Os grandes condomínios verticais economizam terreno e memória arquitetônica. Cada vez mais a moradia torna-se despersonificada nas grandes cidades. Uma visão aérea pouco pode diferenciar um prédio de outro.
Nesse mutirão de concreto e aço há uma falsa impressão sobre a história, seja pregressa, seja futura. Uma mensagem subliminar diz que nós outros é que somos importantes, o passado não serve mais. Afirma que em nossos dias constrói-se o presente e o futuro. Sentimento enganoso!
Embora o ritmo frenético das construtoras e uma expectativa de desenho geográfico mais duradouro, o certo é que estamos apenas limpando o terreno. Construímos sobre bases antigas. Nossos palácios foram precedidos de casas comuns, casebres ou palhoças indígenas. E essa classificação seguirá nas mentes de futuras gerações. Assim, torres ufanantes de 2022 serão ultrapassadas e obsoletas em poucas décadas. Claro, se o mundo existir até lá.
Rui Raiol é escritor
Publicado no jornal O Liberal em 31/05/2022
E-mail: ruiraiol@gmail.com