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Artigo: “Humanidade flutuante”

Segundo uma visão espacial da nossa existência, somos astronautas flutuantes. Vivemos mergulhados na atmosfera da Terra, sua porção mais baixa, onde o oxigênio se amolda a todas as formas, criando contornos perfeitos. Diferenciamo-nos de outros viajantes espaciais apenas pela gravidade. É esta força que nos puxa para baixo e determina o nosso lugar aqui. Cada passo, cada gesto, uma tentativa de fuga. Humanidade flutuante.

Se os peixes não conseguem viver fora d’água, tampouco nós podemos viver sem ar. Nosso oxigênio não é líquido. Gás. Uma bolha que circunda a Terra não por muitos quilômetros. Se subimos uma montanha, a rarefação afeta diretamente nosso corpo. Então, precisamos descer rápido. Mergulhar. Flutuar. A vida acontece dentro desta faixa espacial, onde escrevo, onde você me lê. Humanidade flutuante. Sem exceção alguma. Sem taxação de serviço, pelo menos até que algum político loteie a atmosfera. Privatize. Negocie. Enquanto ele não aparece, vamos flutuando livremente, sem barreiras, sem fronteiras neste gás.

Esta flutuação é um fenômeno complexo, que nos envolve por dentro e por fora. O oxigênio que preenche todos os vazios geográficos é o mesmo que alimenta os nossos pulmões. Respirar é viver. E vivemos assim, enchendo-nos repetidamente de ar. É isto que nos torna corpos flutuantes desta grande bolha. Nada é fixo em nossa vida. Voamos. Humanidade flutuante.

Somos humanidade flutuante porque passaremos. Cada corpo irá um dia aterrissar, voltar de vez ao pó. E se isto não acontecer por um acidente de percurso, acontecerá pelo correr do tempo. Nosso corpo envelhecerá. Vencerá a gravidade, quando, paulatinamente, nos forçar a descer de vez ao chão. Cada músculo. Cada órgão. Cada célula. E, por incrível que pareça, a gravidade terá um aliado nesse combate mortal: o oxigênio. Ele, que nos faz flutuar, fará envelhecer as nossas artérias. Oxidamos. Assim, vamos reduzindo nossa marcha. Parando… parando… até quando finalmente cesse de vez o nosso passeio.

Numa macrovisão, toda a humanidade se renova a cada século. Cem anos. Para não deixar ninguém pulando de graça, salvo algum terráqueo teimoso. Esta é uma visão estática, naturalmente, pois a renovação é permanente. Nesta macrovisão, toda a humanidade é para o planeta como um único ser, único corpo, algo que respira e flutua, um cinturão flutuante de vida, circunscrito e pulsátil na atmosfera. Algo que tem começo, meio e fim.

Às vezes, nossa cabeça diz coisas estranhas. Olhamos bens à nossa volta, e emprestamos deles a natureza morta. Se a casa está de pé, o que pode suceder a nós, seus donos? Porém, o ritmo da nossa respiração assinala o nosso estado precário. A vida é alguma coisa acima de todo entendimento materialista.

A vida é bolha. Suspensão. Ar. Humanidade flutuante. Quem entender bem esta verdade, viverá melhor. Viverá livre de pesos, livre de fardos que auxiliam a gravidade na missão de nos tornar rapidamente pó. Hoje, vamos apenas respirar. Flutuar. Viver. Quanto mais leve, melhor.

Rui Raiol é escritor

Publicado no jornal O Liberal em 10/05/2022

E-mail: ruiraiol@gmail.com