Artigo: “A Bíblia no Supremo”
A escolha de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal consolida a forte influência do papel da Bíblia na sociedade brasileira. Coincidentemente escolhido no mês da Bíblia, o novo ministro materializa a chegada da Escritura ao topo mais alto do Judiciário brasileiro.
Analisando a ponta do iceberg dos bastidores dessa escolha, nessa pequena janela aberta para o cidadão comum, não deixamos de ficar impressionados pelo grande incômodo que a indicação causou. Pela primeira vez a ênfase desse tipo de escolha recaiu sobre a confissão de fé do candidato. Tendo a corte uma composição plúrima nesse aspecto, não recordo de semelhante frenesi sobre os antecessores de Mendonça.
Curiosamente, vivemos em uma país cristão de maioria católica, onde a Bíblia é aclamada publicamente em suas celebrações litúrgicas. Assim, causa espécie o alvoroço verificado. Afinal, independentemente da massiva convicção religiosa do povo brasileiro em torno de Cristo, a Bíblia está na base do ordenamento jurídico do mundo. Assim, mesmo nações extremamente laicas e ainda as de confissão não cristã reproduzem grande parte do Decálogo e dos ensinos de Jesus.
Não furtar, não matar, não ferir, não fraudar, mas espelhar sempre a verdade no relacionamento interpessoal é mandamento bíblico e também dever jurídico. Fazer o que deve ser feito e não fazer o que a lei tipifica como ilícito é a essência da norma. Ação e omissão. Fazer o bem ou deixar de fazer é a base. Filosoficamente, a verdade e o amor devem prevalecer. Prevalecer o bom senso, a importância do coletivo em detrimento do particular, a transparência de nossas ações. Não sonegar, tratar o semelhante como gostaria de ser tratado, observando os mesmos direitos da lei que exige para si mesmo, como conceituou Domício Upiano é dar a cada um o que lhe é devido: isto é Bíblia.
A Bíblia contém lei, doutrina, costumes e se aprofundamos, até mesmo jurisprudência. Engana-se quem pensa que a Bíblia é apenas um livro com cerca de oitocentas mil palavras, ela é fruto de tradições, culturas, sistemas legislativos e judiciários, história, arqueologia e Direito, um verdadeiro tratado sobre origem e aplicação da norma, revelando o que funciona e o que excesso da norma, o que é feito para o povo e o que é capricho legislativo, o que é tradição importante para o povo – vale dizer, direito consuetudinário. A Bíblia é um tratado de processo legislativo e judiciário. Moisés criou o juizado de pequenas causas. Juízes de primeira instância assentavam-se às portas das cidades. A suprema corte judaica era o Sinédrio. O sistema judicial de Israel era tão bom que os romanos não se atreviam a intervir nele. Pilatos lavou as mãos.
A Bíblia enriquece o Supremo Tribunal Federal, ela tem a norma, a opinião dos doutos e a consolidação do seu próprio pensamento jurídico. Ela tem a filosofia, a ciência. Ela trata de julgamento do início ao fim. Um juiz que conhece a Bíblia entende bem do assunto.
Rui Raiol é escritor
Publicado no jornal O Liberal em 14/12/2021
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