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EPISTEMOLOGIA E VERDADE

Nossas verdades são sempre relativas. Segundo a teoria do conhecimento, é muito difícil, para não dizer impossível, atingirmos à dimensão total do conhecimento. Perante simples objeto, podemos defender um conceito que, em sua essência, não pode ser verdadeiro. Se olharmos todas as guerras que o mundo já fez, encontraremos “inimigos” trabalhando em polos que julgam ser tribunas apologéticas de virtudes. Saber é uma atividade bastante difícil.

A nossa visão etnocêntrica nasce dessa dificuldade. Olhamos pessoas diferentes segundo nossos padrões e, imediatamente, uma enciclopédia de defesa é aberta na nossa cabeça. Temos um protótipo. Estereótipo. Temos um modelo que foi formatado em nossa mente, dissolvido no caldo de uma cultura às vezes milenar.

Lemos de um missionário protestante que saiu para evangelizar outras culturas longe de seu país. Chegou a uma tribo remota, onde praticamente os objetos cotidianos mais simplórios do missionário eram desconhecidos ali. Novidade. Ciência. Mistério. Não tardou para que um nativo se encantasse com o relógio de pulso do religioso. Apaixonado pelo objeto, o anfitrião passou a seguir o missionário dia e noite, até o dia em que o visitante tirou o relógio do pulso e o entregou ao jovem silvícola. Porém, dias depois, o missionário encontrou sua joia despedaçada e dependurada no alto de uma árvore.

Anos depois, o missionário estava de volta à sua terra. Aquela era uma noite muito importante, pois ele iria comparecer perante a igreja que lhe confiara a nobre missão transcultural. Antes de sair de casa, entrou em seu quarto para escolher algum elemento que lembrasse aquela cultura distante. Escolheu uma flecha artisticamente trabalhada, que lhe fora entregue pelo chefe da aldeia somente depois de muita insistência.

Nos dois exemplos, ambas as personagens agiram a partir de uma visão etnocêntrica, onde o significado do objeto apontava para um troféu, de acordo com a valoração de cada cultura. Este valor de prêmio representa um deslocamento irremediável do sentido verdadeiro do objeto para cada cultura. Flecha serve para caçar; relógio, para conferir a hora. Desprovidos desse sentido original, a visão alheia lhes outorgou o valor de conquista sobre a cultura de outrem.

Vejamos que é difícil apreendermos o conhecimento, mesmo quando existe um ser humano no outro polo dos nossos relacionamentos. Então, o que dizer quando o nosso relacionamento se entabula apenas entre a gente e um objeto, algo inanimado? Muito difícil conhecer! Eu posso afirmar que existe uma mesa sustentando o computador onde escrevo agora. Mas, outro pode ver coisa diversa, afirmando que é uma árvore, uma árvore que gerou o móvel e ainda lhe dá sustentação. Eu posso insistir que é uma mesa, e ele, tirando um microscópio da mochila, convencer-me que é uma árvore mesmo, com células intactas de pinheiro, por exemplo. Eu não poderia mais dizer que a mesa não é árvore, não obstante todo o revestimento. Em sua essência é árvore mesmo. Porém, meu conhecimento continua sendo superficial. E, neste aspecto, eu jamais saberei o que “é” uma árvore porque, para isto, eu teria de me tornar uma delas, e não dá.

Vejamos quanto um pequeno ensaio pode nos convencer que podemos estar errados sobre muitas convicções. Olhamos alguma coisa, e logo o nosso pensamento constrói uma sentença, um axioma. Mas, a filosofia nos manda pensar o próprio pensamento. Repensar. Eu constantemente erro nas minhas conclusões, e me sinto feliz em perceber isto, não obstante alguns prejuízos. Mas serve para mim. Conta-se que um rei da antiga Macedônia tinha o hábito de cobrir um dos ouvidos quando alguém lhe levava alguma “verdade”. Perguntado sobre o esquisito costume, respondia: “Este ouvido está guardado para ouvir a outra parte.” O rei queria se aproximar quanto possível da verdade.

Em toda a História, apenas um homem afirmou ser a verdade. Desde então, sabemos que, no máximo, podemos nos aproximar desse fenômeno. Saberemos sempre uma parte, a começar por nós mesmos.

Rui Raiol é escritor (Site: www.ruiraiol.com.br)

Publicado no jornal O Liberal em 18/10/2016